Ser guarda-parque no Peru: um trabalho de alto risco e com direitos precarizados

Nas áreas naturais protegidas do Peru, mais de 900 guarda-parques dedicam suas vidas a cuidar da biodiversidade. Mas, apesar da dedicação, eles trabalham em condições precárias e sem ter seus direitos trabalhistas reconhecidos. Mesmo com quase 30 decisões judiciais a seu favor, o Estado continua lhes dando as costas. Esta reportagem conta a história de Graciela Hilares e Agustín Vásquez, que passaram décadas protegendo a natureza sem receber o reconhecimento ou a segurança que merecem.

Paul Tuesta e Ricardo Mendoza

Graciela Hilares percorreu inúmeras vezes as trilhas do Santuário Nacional de Ampay, na região de Apurímac. Durante quase 24 anos de serviço ininterrupto como guarda-parque, sua presença se fundiu com a paisagem, tornando-se parte essencial do território. Ao avançar pelos caminhos íngremes que levam às lagoas de Angasccocha (3.250 m.a.s.l., ou metros acima do nível do mar) e Uspaccocha (3.750 m.a.s.l.), ela parece traçar a rota com cada passo, como se a montanha estivesse sendo moldada sob seus pés. Graciela sabe da importância do seu trabalho na conservação dessa área natural protegida. “Sem nós, ela ficaria deserta, exposta à destruição de suas plantas e à caça ilegal. Somos a primeira linha de defesa”, afirma ela. Porém, ela e seus colegas enfrentam uma dura realidade: seu trabalho ainda não recebe o reconhecimento nem a remuneração que merece.

No Peru, 903 guarda-parques oficiais fazem parte da equipe reconhecida pelo Serviço Nacional de Áreas Naturais Protegidas pelo Estado (Sernanp), que zela incansavelmente pela riqueza natural do país em 76 áreas naturais protegidas, incluindo reservas nacionais, parques nacionais, santuários, reservas paisagísticas, refúgios de vida selvagem, reservas comunais, florestas protegidas, reservas de caça e áreas reservadas.

No entanto, por trás desse esforço coletivo, existe um conflito silencioso: pelo menos trinta desses guarda-parques processaram o Sernanp e o Ministério do Meio Ambiente em função da desnaturação de seus contratos de trabalho. Graciela Hilares é uma das pessoas afetadas. Apesar de seus quase 24 anos dedicados à proteção do Santuário Nacional de Ampay, o Estado não reconheceu plenamente seus direitos trabalhistas. Seu caso, como o de muitos outros, reflete uma dívida pendente com aqueles que protegem os tesouros naturais do país em condições que estão longe de ser justas.

Para esta investigação, foram analisadas 27 sentenças proferidas em favor de guarda-parques peruanos: 12 em primeira instância, 12 em segunda instância e 3 no Supremo Tribunal. De acordo com os autos analisados, correspondentes a 13 casos específicos, o Sernanp e o Minam acumulam uma dívida de 1.666.785,00 sóis, correspondente a férias vencidas, indenizações, juros e outras questões. Os demandantes, que tem entre 14 e 21 anos de serviço, enfrentam uma insegurança profissional que os impede de planejar sua aposentadoria.

Essas decisões respaldam as demandas daqueles que, como Graciela Hilares, vêm lutando pelo reconhecimento de seus direitos trabalhistas, evidenciando um padrão de descumprimento sistemático que foi corrigido pelo judiciário em diversas ocasiões.

Graciela Hilares, guarda-parque oficial do Santuário Nacional de Ampay. Lagoa Angasccocha (a 3.250 m.a.s.l.). Foto: Gabriel Garcia.

Direitos negados: a luta dos guarda-parques

Graciela Hilares se lembra com tristeza de colegas que dedicaram mais de 30 anos de suas vidas ao serviço de guarda-parques e morreram sem receber os benefícios a que tinham direito. Seu trabalho, muitas vezes realizado em condições extremas, caiu no esquecimento. É por isso que ela agora luta para garantir um futuro digno para sua família e suas filhas, e não tem intenção de desistir, apesar dos constantes atrasos e recursos em seu processo judicial.

Ser guarda-parque no Peru envolve não apenas proteger áreas naturais, mas também enfrentar perigos constantes. Ameaças, ataques e condições adversas fazem parte do seu cotidiano. No entanto, o Estado continua não garantindo a segurança nem reconhecendo o trabalho desses profissionais. A morte de Lorenzo Wampagkit Yamil, assassinado em 2020, e de Jailer Jota Coquinche, que morreu de dengue aos 24 anos, em uma remota área de fronteira, demonstram as condições precárias em que realizam seu trabalho. O sacrifício deles deixa claro que esses protetores do meio ambiente precisam de mais proteção e reconhecimento.

A essa lista se somam tragédias recentes como a de Victorio Dariquebe Gerawairey, assassinado em abril de 2024, e Quinto Inuma Alvarado, cujo assassinato em novembro de 2023 chocou o país. Ambos dedicaram suas vidas a defender o meio ambiente como guarda-parques, enfrentando perigos que evidenciam a falta de medidas adequadas para protegê-los. Esses casos emblemáticos ressaltam a necessidade urgente de valorizar e garantir a segurança daqueles que protegem o patrimônio natural do Peru e, mais ainda, de respeitar seus direitos trabalhistas.

Mar Pérez, advogada responsável pela Unidade de Defensores Ambientais da Coordenação Nacional de Direitos Humanos do Peru, destaca que os guarda-parques enfrentam uma situação de extremo risco devido às constantes agressões que sofrem. Ela ressalta que, assim como outros defensores do meio ambiente e líderes sociais, os guarda-parques “são objeto permanente de agressões, que vão de atos de intimidação a ameaças, mas também assassinatos”.

Apesar disso, como no caso de Graciela, não lhes são garantidos direitos mínimos.

Jair Rentería é guarda-parque na Reserva de Caça El Angolo, em Tumbes. Em julho de 2024, seu posto foi atacado por caçadores ilegais. Foto: Ricardo Mendoza

Henry Carhuatocto, advogado especializado em direito trabalhista e ambiental e diretor do Instituto de Defesa Legal do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (IDLADS Peru), explica que os conflitos trabalhistas envolvendo guarda-parques datam da década de 1990. Naquela década, o extinto Instituto Nacional de Recursos Naturais (INRENA) os contratou em regime de prestação de serviços, um modelo que pressupõe que a pessoa contratada não tenha chefe direto, goze de autonomia total e receba honorários por um serviço específico. No entanto, Carhuatocto ressalta que “no caso do guarda-parque, isso é impossível, pois esse profissional está subordinado ao chefe da área protegida, a especialistas e a trabalhadores administrativos”.

O advogado, que representa os 13 casos analisados ​​nesta investigação, explica que os contratos de arrendamento são inadequados porque os guarda-parques cumprem as características de um contrato de trabalho. “Nos autos, demonstramos que a relação deles cumpre os três elementos essenciais de um contrato de trabalho: é prestação de serviço pessoal, é remunerada e há subordinação por parte do empregador, o que permite que sejam fiscalizados e punidos como trabalhadores formais”, explica.

Essa subordinação, esclarece, justifica a reivindicação dos guarda-parques por benefícios sociais que deveriam receber desde a década de 1990, como gratificações, adicional por tempo de serviço, escolaridade, entre outros. “É isso que estamos exigindo, e não estamos recebendo até agora”, enfatiza Carhuatocto.

Augusto Vásquez é guarda no Parque Nacional Cerros de Amotape, em Tumbes. O posto de controle onde ele trabalha, a “Estação Biológica ‘El Caucho’”, é classificado como em “mau estado” pelo Sernanp. Foto: Ricardo Mendoza.
Mureta no posto de controle “Estação Biológica El Caucho”. O próprio Sernanp reconhece que apenas 30 dos 229 postos sob sua responsabilidade estão em boas condições, enquanto 34 estão em más condições e 164, em condições “regulares”. Foto: Ricardo Mendoza.

O judiciário tem decidido repetidamente em favor dos guarda-parques, com base no chamado “princípio da primazia da realidade”. Citado com frequência em sentenças. Esse princípio estabelece que, em caso de divergência entre o que ocorre na prática e o que está formalmente documentado, a realidade dos fatos prevalece sobre o que está estipulado nos documentos. Ou seja, o que acontece na relação de trabalho tem mais peso do que o previsto em um contrato.

Esta interpretação é respaldada pela Lei de Produtividade e Competitividade do Trabalho. Seu artigo 4º estabelece que, no caso de prestação pessoal de serviços remunerados e subordinados, presume-se a existência de contrato de trabalho por tempo indeterminado. Além disso, o artigo 72 especifica que os contratos de trabalho devem ser celebrados por escrito, indicando claramente sua duração e as razões objetivas que justificam a modalidade contratual. Por fim, o artigo 77 adverte contra a “desnaturalização dos contratos” nos casos em que fique demonstrada simulação ou fraude de disposições legais.

No caso dos guarda-parques, essa regulamentação foi fundamental para mostrar que seus contratos de serviço não refletem a realidade de sua relação de trabalho.

Página 12 da sentença de primeira instância, favorável a Graciela Hilares. Menciona e explica o “Princípio da Primazia da Realidade”, também chamado de princípio da realidade.

Um passo adiante: o falso reconhecimento dos direitos dos guarda-parques

No coração do Parque Nacional de Cutervo, a primeira área natural protegida do Peru, Agustín Vásquez Gonzáles dedicou mais de 25 anos à proteção de sua biodiversidade. Aos 50 anos, esse guarda-parque do Serviço Nacional de Áreas Naturais Protegidas do Estado (Sernanp) enfrentou incêndios florestais, madeireiros ilegais e condições de trabalho precárias, que puseram à prova o seu comprometimento.

Desde 1999, Vásquez trabalha no Posto de Controle e Vigilância “La Capilla”, onde realiza patrulhas diárias, previne crimes ambientais e alerta as autoridades sobre atividades ilegais. Apesar da dedicação, o Estado não retribuiu seus esforços. A história dele é a de muitos guarda-parques, como Graciela Hilares e pelo menos outros 11, cujos processos judiciais indicam uma luta constante pelo reconhecimento de seus direitos.

Apesar de ter a seu favor duas decisões judiciais e um recurso de cassação que reconhecem seus direitos trabalhistas, como férias, gratificações e adicional por tempo de serviço, o Ministério do Meio Ambiente (Minam) e o Sernanp não cumpriram essas determinações.

“Eu trabalho a serviço do Estado há 25 anos. Por isso, entrei com um processo na justiça, procurei meu assessor jurídico e apresentei a minha demanda. Acabo de ganhar as ações. Há decisões, sentenças, que estão sendo emitidas [condenando] o Sernanp, mas é uma pena que ele se faça de surdo e não responda à minha demanda”, comenta com amargura o experiente guarda-parque de Santo Domingo de la Capilla, onde fica o Parque Nacional de Cutervo, em Cajamarca.

Agustín Vázquez, guarda-parque do Parque Nacional de Cutervo. Foto: Ricardo Mendoza.

O caso de Agustín Vásquez Gonzáles assume um tom ainda mais grave devido às ações do Sernanp. Apesar de não ter reconhecido seus direitos trabalhistas na prática, a instituição emitiu um atestado informando que o guarda-parque já se enquadra no Regime Trabalhista 728, o que implicaria ele ter recebido os benefícios acumulados em seus 25 anos de serviço. Mas isso está longe da realidade.

“Gostaria que vocês olhassem para este certificado de trabalho assinado pelo setor de recursos humanos [do Sernanp], como se praticamente debochasse de mim, porque diz em seu documento que eu sou guarda-parque, conforme o decreto legislativo 728. Mas é mentira, é falso. “Eu não usufruo desse benefício nem de nada até hoje; eles só emitem uns papeizinhos, nada mais”, reclama Vásquez, visivelmente indignado.

O advogado Henry Carhuatocto, que representa Vásquez, descreve esse ato como extremamente grave. “O que eles estão fazendo é entregar um atestado afirmando que os guarda-parques foram incorporados à folha de pagamento 728, mas, na realidade, eles continuam recebendo contracheques do CAS, o que mostra que eles não estão nesse regime”, explica. Ele também acrescentou enfaticamente: “Na prática, esse tipo de atestado seria falsidade ideológica”. Esse fato reflete não apenas o descumprimento de ordens judiciais, mas também uma tentativa de encobrir a real situação, agravando as já precárias condições de trabalho dos guarda-parques.

Cabe destacar que, no dia 17 de dezembro de 2024, foi realizada uma reunião entre alguns guarda-parques com processos pendentes na Justiça e o próprio Sernanp. Entre eles, Agustín Vásquez. Nessa reunião, foi acertado o pagamento dos direitos trabalhistas vencidos do seu caso e de outros, após quase 10 anos de litígio. Embora o pagamento já tenha sido efetuado perante o Poder Judiciário em 9 de janeiro de 2025, até o momento não foi efetivado, pois ainda não chegou a notificação correspondente para Vásquez.

Agustín Vásquez Gonzáles com seu companheiro, Víctor León Flores, mostrando os atestados emitidos pelo Sernanp declarando que eles estão enquadrados no Regime 728, quando, na prática, seus direitos não foram reconhecidos. Victor tem um processo semelhante ao de Agustín. Foto: Ricardo Mendoza.

Um silêncio oneroso

Embora a Lei 31991, que rege a situação dos Guarda-Parques Peruanos, já tenha sido regulamentada após quase uma década de luta pelo Sindicato dos Trabalhadores de Sernanp (Sutrasernanp), sua aplicação permanece incerta. Essa lei estabelece um regime especial que melhora as condições de trabalho dos guarda-parques, incluindo aumentos salariais e adicionais por trabalho em áreas remotas, fronteiriças ou de difícil acesso. No entanto, não se sabe quando entrará em vigor.

Ignacio Sánchez, secretário-geral da Sutrasernanp, explica que a lei não definiu quem serão os beneficiários nem como suas disposições serão implementadas. Embora a Lei Orçamentária de 2025 tenha destinado 10 milhões de sóis para sua execução, o desembolso está previsto apenas para agosto deste ano e sem um cronograma claro. A incerteza persiste, deixando os guarda-parques na mesma situação precária que enfrentam há anos.

A contribuição que os guarda-parques dão ao país contrasta drasticamente com o tratamento que recebem. Segundo o Ministro do Meio Ambiente, Juan Carlos Castro Vargas, a conservação de Áreas Naturais Protegidas (ANP) gera 3,3% do PIB do Peru. No entanto, aqueles que guardam esses territórios enfrentam condições precárias. Apesar dos riscos do trabalho, seus salários variam de 1.600 a 2.200 sóis (425-585 dólares), uma remuneração que não reflete a importância do seu trabalho.

Para esta reportagem, foi solicitada uma entrevista com o responsável do Sernanp, José Carlos Nieto, através da Unidade Funcional de Imagem Institucional e Comunicação Social no dia 3 de dezembro, mas a entrevista foi negada. Posteriormente, foi enviado um questionário em 5 de dezembro, com perguntas sobre o problema, e o pedido de resposta foi reiterado em fevereiro, mas até o momento da publicação desta matéria, houve apenas silêncio.

Enquanto isso, guarda-parques como Graciela Hilares e Agustín Vásquez Gonzáles continuam lutando, sem desistir, na batalha pelo reconhecimento de seus direitos.

Você pode assistir a esta reportagem, em sua versão em vídeo, aqui: