Núcleo teve acesso a documentos de agências contratadas pelo Kwai que mostram incentivos à cópia de conteúdos infantis publicados em outras redes sociais, como Instagram, TikTok e YouTube, sem que o direito à imagem dessas crianças seja respeitado.
ℹ️ Esta reportagem faz parte da série “Cortadores Digitais”, uma investigação produzida pela equipe do Núcleo com apoio da Rede Internacional de Jornalistas do Trabalho (Redlabora), que concedeu uma bolsa de U$2 mil dólares para financiar a nossa apuração.
O Kwai recruta editores de vídeo amadores e os orienta a copiar vídeos que mostram “bebês e crianças” em outras redes sociais para republicá-los na plataforma de origem chinesa. A recompensa: 0,025 centavos de dólar (cerca de R$0,15) para cada 1,000 visualizações conquistadas no app por conteúdo copiado.
As informações estão em documentos de orientação obtidos pelo Núcleo junto a agências terceirizadas que fazem esse recrutamento para a empresa.
O arquivo obtido pela reportagem inclui um guia com diretrizes e referências diretas para se publicar conteúdo infantil plagiado no Kwai. O material parece ter sido traduzido sem muito cuidado do mandarim para o português, e traz referências de posts em redes sociais da China, como a versão do TikTok no país, o Douyin.
O nome do documento é “Guia SC para bebês e crianças em português 🥰”. A sigla SC é utilizada internamente pela rede social para se referir a conteúdos de Secondary Creation (ou criação secundária, em português) – que basicamente significa coletar vídeos na internet, reeditá-los com narrações ou ajustes mínimos, e depois repostar no Kwai.
É ✷ importante ✷ porque…
- Kwai tem um guia com orientações sobre como editores de vídeos devem plagiar conteúdos de bebês e crianças de outras redes em troca de centavos de dólar
- Monetizar e impulsionar o plágio de conteúdo com crianças desrespeita direito à imagem de menores de idade
- Cortadores de vídeos precisam conquistar 86 mil views ao dia para garantir remuneração maior que a da linha da extrema pobreza
O documento foi enviado à reportagem por uma agência terceirizada que presta serviços à plataforma, a Blue Pink. Após pedirmos uma entrevista ao Kwai via WhatsApp, fomos respondidos com uma mensagem padrão que trazia os requisitos de produção de conteúdo, incluindo o guia de “bebês e crianças”.
No Instagram, a Bluepink promete “faturamento em dólar” para “quem quer ganhar muito dinheiro” como forma de atrair cortadores de vídeos, que usam o celular para editar clipes curtos. A plataforma paga em média US$0,025 para cada mil visualizações conquistadas no app a depender do nicho de conteúdo, segundo um dos documentos que obtivemos.
A cópia descarada de conteúdo alheio vai contra as próprias regras de propriedade intelectual do Kwai, que diz em seus termos de uso que é responsabilidade dos usuários terem autorização de uso ou serem os proprietários do conteúdo que publicam. Já em sua política de direitos autorais, a rede social afirma que não monitora ou supervisiona, nem faz busca ativa por violações do tipo.
💰 São necessárias mais de 86 mil visualizações diárias para que um cortador de vídeos curtos do Kwai garanta uma remuneração maior que U$ 2,15 dólares ao dia, considerada a linha da extrema pobreza pelo Banco Mundial. Em alguns casos, o valor pago pela plataforma pode ser complementado por receitas de anúncios.

#BebeNoKwai
Segundo o guia de “conteúdo secundário” de bebês e crianças, a plataforma divide os conteúdos infantis que prefere em oito subcategorias – tais como “crianças talentosas”, “falha engraçada / criança comete erros” ou “momentos de amor e carinho” – e indica o uso de hashtags que vão de #BebeFofinho a #MeuBebe para uma melhor distribuição dos vídeos.
Um ex-funcionário da rede social no Brasil confirmou ao Núcleo que o documento segue o padrão das diretrizes repassadas pela rede social às suas agências terceirizadas, as responsáveis por recrutar os editores amadores que irão abastecer a plataforma com vídeos plagiados de outras redes, um modus operandi revelado pela revista piauí em jan.2024.
PLÁGIO VIRAL. Por meio de uma busca no app por #BebeNoKwai, uma das hashtags sugeridas pelo documento, a reportagem identificou uma das principais páginas do nicho na plataforma, a Mundo Kids, que acumula mais de 2,4 milhões de seguidores e 60 milhões de curtidas.
Ela segue os padrões estipulados pelo guia, como sugestões para hashtags, e costuma repostar vídeos com crianças originalmente publicados por influencers e celebridades no Instagram. De diferente, a página adiciona apenas um fundo e uma nova legenda aos vídeos.
Pelas regras de remuneração média do Kwai para o conteúdo de bebês e crianças de editores terceirizados, a Mundo Kids – que é uma das maiores do nicho infantil na rede social e somou 3,9 milhões de visualizações em seus 20 últimos vídeos – teria recebido cerca de US$99 dólares (~R$600), pelos conteúdos plagiados.

BAIXA QUALIDADE 👍
Um segundo documento, o “Regras de contas de Criação Secundária (SC)”, traz orientações sobre como a rede social classifica a qualidade dos conteúdos que encomenda. Ele foi obtido pela reportagem por meio de outra agência terceirizada do Kwai, a JV.
O guia de regras ressalta que não há “bons exemplos” de vídeos do nicho de bebês e crianças na plataforma, mas lista uma página do gênero considerada de “baixa qualidade”, o perfil @babyrisos.
Segundo o arquivo, a página “adiciona algumas descrições, mas as informações não são suficientes”, em referência à falta de edição no conteúdo plagiado. No entanto, o perfil segue no ar e acumula mais de 198 mil seguidores e 1,9 milhão de curtidas na rede social.
A reportagem identificou que a @babyrisos republica praticamente na íntegra conteúdos originalmente postados por influencers no TikTok, no Instagram e no YouTube Shorts.

Criança “gordinha” ou “bonita”
De acordo com o advogado João Francisco Coelho, do Programa Criança e Consumo do Instituto Alana, esses perfis e a rede social utilizam da imagem de crianças para fins comerciais sem que elas autorizem ou possam contestar esse uso.
“A imagem, o som, a voz, tudo isso são dados pessoais de uma criança que estão sendo utilizados por terceiros, inclusive pelo Kwai, para fins de lucro”, disse o advogado.
👶 A LGPD (Lei Geral da Proteção de Dados) define, em seu artigo 14, que “o tratamento de dados pessoais de crianças e de adolescentes deverá ser realizado em seu melhor interesse”, e mesmo assim requer “consentimento específico e em destaque dado por pelo menos um dos pais ou pelo responsável legal”.
Segundo o advogado, que revisou o documento a pedido do Núcleo, o guia do Kwai inclui sugestões que sexualizam crianças e impõem padrões estéticos adultos a elas. Uma das hashtags sugeridas pelas diretrizes da rede social, a #Bebefofinho, deve ser usada em conteúdos de uma criança que seja “Gordinha/Fofa/Bonita/Bonito”, segundo o arquivo.
Um dos exemplos “positivos” de conteúdos listados no documento inclui o print de um vídeo “engraçado” em que um cigarro é adicionado à boca de uma criança por meio de um filtro.
Além disso, um dos links listados no documento direciona a uma página interna da Kuaishou, a controladora chinesa da rede social, inacessível do Brasil.
Fica evidente, até para quem não é especialista, que a preocupação no documento passa ao largo da proteção das crianças
– João Francisco Coelho, Instituto Alana

Coelho avalia que as práticas do Kwai são “flagrantemente ilícitas”.
“De maneira geral, há uma exploração indevida da imagem, do trabalho e dos dados pessoais desses menores de idade que se traduzem em benefícios econômicos para o Kwai, mas não para as crianças que estão sendo exploradas”, resume o advogado do Instituto Alana.
“Isso faz parte de um modelo de negócios da plataforma que busca se tornar mais atrativa para pessoas em vulnerabilidade, seja por razão econômica, seja em decorrência de sua idade”, conclui.
Agências e Kwai desconversam
Procurado pela reportagem, o Kwai disse em nota que “tanto os criadores de conteúdo quanto as agências parceiras seguem critérios estritos de revisão para assegurar a conformidade com a legislação brasileira e com as Diretrizes da Comunidade, incluindo o respeito aos direitos de propriedade intelectual, à privacidade e à segurança de terceiros, com atenção especial à proteção de crianças e adolescentes”.
Leia a íntegra da nota enviada pelo Kwai ao Núcleo
O Kwai adota práticas rigorosas e atua em total conformidade com as regulamentações locais e os mais elevados padrões éticos para garantir a segurança da sua plataforma, dos seus parceiros e usuários. Tanto os criadores de conteúdo quanto as agências parceiras seguem critérios estritos de revisão para assegurar a conformidade com a legislação brasileira e com as Diretrizes da Comunidade, incluindo o respeito aos direitos de propriedade intelectual, à privacidade e à segurança de terceiros, com atenção especial à proteção de crianças e adolescentes.
A plataforma opera com mecanismos de segurança ativos 24 horas por dia, 7 dias por semana, combinando inteligência artificial e revisão humana. Conteúdos ou anúncios que violem leis ou regulamentos são prontamente removidos, acompanhados da suspensão ou encerramento de contas infratoras. Quando necessário, o Kwai realiza relatórios proativos às autoridades competentes.
Além disso, o Kwai oferece ferramentas acessíveis para que sua comunidade denuncie conteúdos inadequados diretamente pelo aplicativo ou pelo e-mail customer-service@kwai.com. Todas as denúncias são analisadas com rigor, contribuindo para o aperfeiçoamento contínuo dos protocolos de segurança.
No primeiro semestre de 2024, o Kwai removeu mais de 5 milhões de vídeos globalmente por violação das Diretrizes da Comunidade ou dos Termos de Serviço, o que representou menos de 1% de todo o conteúdo publicado no período. Nesse mesmo intervalo, mais de 533 mil contas foram banidas, incluindo 222 mil pertencentes a menores de 13 anos, em alinhamento com as políticas de proteção ao público infantil.
Com um compromisso firme de oferecer um ambiente digital confiável e seguro, o Kwai continua aprimorando suas ferramentas de controle e reafirma seu propósito de ser uma plataforma que prioriza a segurança e o bem-estar de todos os usuários.
Já a agência Bluepink disse ao Núcleo que não poderia “compartilhar informações sobre o funcionamento interno da plataforma ou de suas agências parceiras”, mas afirmou que agências terceirizadas “são orientadas a garantir que os editores de conteúdo sigam as diretrizes [da comunidade do Kwai] e mantenham práticas éticas e apropriadas”.
Leia a íntegra do posicionamento da agência Bluepink
Não temos autorização para compartilhar informações sobre o funcionamento interno da plataforma ou de suas agências parceiras. Recomendamos que você entre em contato diretamente com as partes responsáveis para obter os esclarecimentos necessários.
No entanto, conforme o que nos é informado, a plataforma opera de acordo com a legislação vigente, sempre priorizando a segurança e o bem-estar de seus usuários.
Sobre pirataria, a plataforma adota medidas para inibir qualquer prática que viole direitos autorais, como limitar o tempo de visualização dos conteúdos, evitando o compartilhamento integral indevido.
Em relação ao controle de menores, a plataforma utiliza dados vinculados às contas para garantir a segurança dos usuários e proibir saques realizados por menores. Para prevenir violações das diretrizes, a plataforma mantém um monitoramento ativo das contas e pode interromper a monetização ou encerrar parcerias caso identifique condutas inadequadas.
As agências parceiras também são orientadas a garantir que os editores de conteúdo sigam as diretrizes e mantenham práticas éticas e apropriadas.
Esperamos ter ajudado dentro do que nos cabe responder. Ressaltamos que informações fora do contexto desta resposta não devem ser utilizadas.
Para mais detalhes, sugerimos buscar diretamente a plataforma.
A segunda agência mencionada neste texto, a JV, encaminhou um posicionamento semelhante. A empresa disse que o Kwai segue as leis e prioriza a segurança e conforto de seus usuários, além das agências também serem orientadas a pedir a seus editores que sigam as diretrizes das plataformas e sigam “boa conduta”.
Leia a íntegra do posicionamento da agência JV
Não temos permissão para falar sobre o funcionamento interno da plataforma e agências então você deveria tentar contato com eles. Porém, nos cabe responder que segundo a tudo que nos é passado a plataforma trabalha seguindo as leis e prioriorizando a segurança e conforto de seus usuários.
Para inibir e não apoiar pirataria, todos os conteúdos contem tempo específico sem compartilhar toda íntegra do conteúdo respeitando também direitos autorais.
Sobre controle de menores a plataforma segue mantendo a segurança identificando o usuário pelos dados vinculados a conta e para saque, não permitindo menores e para evitar que pessoas má intencionadas façam o contrário do orientado a plataforma tem o controle das contas podendo interromper a monetizaçao e parceria com o editor caso ele viole as diretrizes.
As agências também são orientadas a orientar os editores para que elaborarem trabalhos seguindo as diretrizes e mantendo boa conduta. Espero ter ajudado no que cabe a nós responder.
Nenhuma fala fora de contexto será aceita em sua publicação falamos sobre nós e nossa ética, para mais informações somente a plataforma.
Obrigado
Como fizemos isso
A reportagem buscou por termos como “agência”, “cortadores”, “kwai e “kwaicut” em ferramentas de busca e redes sociais, como Instagram, X/Twitter e YouTube. Com isso, encontramos agências como a Bluepink e a JV nas redes sociais.
Inicialmente, entramos em contato com a Bluepink por meio do WhatsApp para solicitar uma entrevista sobre como funciona o recrutamento de editores de vídeos na plataforma. O pedido foi ignorado, mas recebemos uma mensagem padrão com links para vários documentos, incluindo diretrizes de conteúdo para os editores recrutados.
Em seguida, revisamos alguns desses documentos e encontramos o guia de criação secundária para bebês e crianças. A partir disso, buscamos por conteúdos que seguiam essas diretrizes no Kwai, bem como revisamos os materiais linkados nos respectivos arquivos e analisamos os perfis que encontramos para entender seu modus operandi.
Por fim, contatamos o Kwai e reforçamos nossos pedidos de entrevista às agências mencionadas nesta reportagem.
📄 TRANSPARÊNCIA
A íntegra dos documentos coletados pelo Núcleo junto a agências terceirizadas da rede social estão disponíveis neste link