Como o Kwai virou um amontoado de conteúdo pirata

Contas da própria rede registradas na Zâmbia remuneram valores entre R$ 0,15 e R$ 0,24 a cada mil visualizações em vídeos de editores recrutados por agências; conteúdos devem reeditar materiais como filmes, transmissões esportivas e posts de influenciadores de outras redes

O Kwai usou agências terceirizadas para recrutar uma rede de editores de vídeo amadores com a finalidade de copiar conteúdos sem permissão – como filmes, séries, transmissões esportivas ou posts de influencers em outras redes – e republicá-los na plataforma em troca de centavos, sem pagar direitos autorais.

Esses editores são “contratados” de maneira informal para repostar os vídeos em “perfis-fantasma” criados pelo próprio Kwai (uma empresa de origem chinesa), mas registrados na Zâmbia, país no centro-sul da África. Quem é recrutado por essas agências recebe uma dessas contas “emprestada” para monetizá-la via anúncios.

A cada mil visualizações, os cortadores de vídeos recebem cerca de R$0,15 como recompensa. Certos nichos de conteúdo, como esportes, entretenimento, FTV (sigla para “Filmes e TV”) ou NarraStars (que narram cenas de filmes usando inteligência artificial) ganham mais. Nesses casos, o valor sobe para R$0,27, considerando o dólar a R$6.

O recrutamento para o serviço é feito via WhatsApp, Telegram e Instagram por agências como BluePink, D&G Mundo Digital e JV. Elas prometem “faturamento em dólar” para “quem quer ganhar muito dinheiro” com o Kwai.

O Ministério Público Federal (MPF) atualmente investiga como a rede social usou a rede pirata para encomendar e disseminar conteúdos falsos e apelativos.


É ✷ importante ✷ porque…

  • O Kwai não respeita conteúdos protegidos por direitos autorais e lucra com a pirataria
  • Editores são recrutados por agências terceirizadas que prometem renda em dólar, mas pagam centavos por vídeo postado

A reportagem confirmou com uma pessoa que já trabalhou na rede social que os documentos que acessamos seguem o padrão das diretrizes repassadas pela empresa às agências.

Os conteúdos criados pela rede terceirizada mantida pelo Kwai violam seus próprios termos de serviço e regras de comunidade.

Tudo isso acontece dentro de um programa chamado Kwai Cut, cujo objetivo seria impulsionar a produção de conteúdo no Kwai, mas, em muitos casos, a modalidade paga para editores copiarem conteúdos de outras fontes e republicá-los na rede.

Em 2024, uma reportagem da piauí mostrou que a rede social pagou por fake news, clonou contas de personalidades famosas e impulsionou conteúdo pirata por meio do Cut.

Procurado pela reportagem, o Kwai disse em nota ao Núcleo que “tanto os criadores de conteúdo quanto as agências parceiras seguem critérios estritos de revisão para assegurar a conformidade com a legislação brasileira e com as Diretrizes da Comunidade”, o que incluiria “o respeito aos direitos de propriedade intelectual”.

Leia a íntegra da nota enviada pelo Kwai ao Núcleo

O Kwai adota práticas rigorosas e atua em total conformidade com as regulamentações locais e os mais elevados padrões éticos para garantir a segurança da sua plataforma, dos seus parceiros e usuários. Tanto os criadores de conteúdo quanto as agências parceiras seguem critérios estritos de revisão para assegurar a conformidade com a legislação brasileira e com as Diretrizes da Comunidade, incluindo o respeito aos direitos de propriedade intelectual, à privacidade e à segurança de terceiros, com atenção especial à proteção de crianças e adolescentes.

A plataforma opera com mecanismos de segurança ativos 24 horas por dia, 7 dias por semana, combinando inteligência artificial e revisão humana.
Conteúdos ou anúncios que violem leis ou regulamentos são prontamente removidos, acompanhados da suspensão ou encerramento de contas infratoras. Quando necessário, o Kwai realiza relatórios proativos às autoridades competentes.

Além disso, o Kwai oferece ferramentas acessíveis para que sua comunidade denuncie conteúdos inadequados diretamente pelo aplicativo ou pelo e-mail customer-service@kwai.com. Todas as denúncias são analisadas com rigor, contribuindo para o aperfeiçoamento contínuo dos protocolos de segurança.

No primeiro semestre de 2024, o Kwai removeu mais de 5 milhões de vídeos globalmente por violação das Diretrizes da Comunidade ou dos Termos de Serviço, o que representou menos de 1% de todo o conteúdo publicado no período.
Nesse mesmo intervalo, mais de 533 mil contas foram banidas, incluindo 222 mil pertencentes a menores de 13 anos, em alinhamento com as políticas de proteção ao público infantil.

Com um compromisso firme de oferecer um ambiente digital confiável e seguro, o Kwai continua aprimorando suas ferramentas de controle e reafirma seu propósito de ser uma plataforma que prioriza a segurança e o bem-estar de todos os usuários.

Contas da Zâmbia

O método de recrutamento de editores terceirizados para o Kwai Cut varia conforme a agência. Em alguns casos, é necessário preencher formulários do Google ou participar de grupos do WhatsApp.

Já uma das agências terceirizadas, a D&G, nos concedeu acesso a um dos “perfis-fantasma” do Kwai de forma automática após ser contatada via Instagram. Não preenchemos nada, nem ocultamos nossa identidade de jornalistas ao fazer o contato – apenas ganhamos acesso à conta.

O login era feito por meio de um número de telefone da Zâmbia e a conta vem sem seguidores, com um nome padrão (“User_” mais uma sequência de números, que pode ser trocado) e a possibilidade de se ativar a monetização de anúncios. Usuários que não postam novos vídeos por um mês têm a conta confiscada pela plataforma.

Entre as agências e os editores recrutados, a conta registrada no país africano é tratada, na verdade, como uma conta “da China” por ser um perfil criado pelo próprio Kwai para ser habilitado ao Cut.

Agência JV ensina editores recrutados nas redes sociais a logarem em conta criada pelo Kwai com registro na Zâmbia

15 A 18 CORTES POR DIA

O estrategista digital Rodrigo Pereira, 40 anos, gastava cerca de seis horas diárias postando vídeos em uma dessas contas “emprestadas” pelo Kwai por meio da D&G. “Eu fazia de 15 a 18 vídeos diários e não tinha ganhos altos”, explicou. “O retorno era pífio”, diz.

Ele manteve o trabalho por alguns meses, só que, após sua conta não monetizar como o esperado, ele recebeu a orientação da agência de que “o ideal era postar 100 vídeos todo dia”. Por fim, ele desistiu de cortar vídeos para a rede social.

“As agências queriam era um trabalho escravo e desvalorizado”, afirma.

Apresentação da agência D&G mostra que Kwai paga uma base de U$ 0,025 a cada 1 mil visualizações por vídeo, mas que certos nichos ganham a mais: U$ 0,04. Na conversão para reais, o pagamento varia entre R$ 0,15 e R$ 0,24.

PIOR QUE IFOOD. A reportagem entrevistou uma pessoa que trabalhou no Kwai e tem conhecimento de como a plataforma orienta a produção de conteúdo junto às agências terceirizadas. Essa fonte prefere se manter anônima para evitar represálias da empresa chinesa, mas ela disse que casos como o de Pereira eram comuns.

“Eu vi gente ganhando de 30 dólares por mês a 4 mil dólares, mas os que ganhavam muito eram pouquíssimos”, diz. “Que passavam de R$ 1500 [mensais] devo ter visto uns dez, porém ganhar pouco era na casa das centenas”, relatou a pessoa.

Agência JV ensina editores recrutados nas redes sociais a logarem em conta criada pelo Kwai com Pagamentos aos editores de vídeo recrutados são feitos diretamente pelo Kwai por meio da carteira do app, via pix

Com isso, a promessa de que ganhar dinheiro dependia do mérito individual mantinha os editores motivados a produzirem vídeos por longos períodos, na expectativa de remunerações melhores enquanto ganham poucos dólares no processo.

“Eu fico pensando em uma analogia com [ser entregador do] iFood, mas muito mais precarizado”, diz.

De acordo com o pesquisador Rafael Grohmann, da Universidade de Toronto, esse tipo de trabalho também é ainda menos transparente e mais opaco do que os de serviços de entrega ou motoristas.

“No iFood ou Uber, você sabe quem está ali, tá visível, mas em fazendas de cliques e cortes de vídeos não, então há essa opacidade ainda maior do que a das plataformas desenhadas para serem de trabalho”, diz.

📽️ INFORMALIDADE. Segundo Grohmann, os discursos ligados a plataformas digitais que prometem “renda extra” ou “renda em dólar” soam atraentes para muitos trabalhadores em um país como o Brasil, que é marcado por altos níveis de informalidade e por escalas de trabalho exaustivas no mercado formal, como a 6×1. “O vocabulário de renda extra ou fácil sem sair de casa se repete desde as fazendas de clique até nisso”, explica.

Kwai pede que editores de vídeo copiem e repostem conteúdos de torneios protegidos por direitos de transmissão publicados originalmente no YouTube do GloboEsporte em documento entregue por agências a cortadores de vídeos. Na aba “suporte de operações”, a rede social promete “tráfego adicional” (isto é, mais visualizações) e recomendações de prioridade na pesquisa do app para quem produzir os conteúdos demandados.

Conteúdo encomendado

De acordo com os entrevistados, os conteúdos postados pelos editores recrutados devem seguir diretrizes do próprio Kwai.

“Dentro do Cut, as agências já mandam o catálogo dos subnichos [de vídeos], você escolhe e eles te encaminham a conta que já vem da China”, explica Rodrigo Pereira. No caso dele, o nicho que ele escolheu foi o de notícias.

Além disso, as agências fornecem orientações e tutoriais sobre qual o tipo de vídeo que a rede social quer que seja republicado e como isso deve ser feito. Internamente, esse tipo de vídeo é batizado de SC (Secondary Content), ou “conteúdo secundário”.

Em vídeo postado no Instagram, a agência GoUp mostra que uma conta chamada “Comédia do Bozo”, que usa uma montagem do ex-presidente Jair Bolsonaro como foto de perfil e republica vídeos do canal de humor Paranafernalha, faturou 9 mil dólares. “Seguindo as diretrizes e com dedicação, os editores podem obter retornos significativos, especialmente em nichos populares”, diz a legenda do post

“Não transfira diretamente conteúdo de vídeo de outros sites (é provável que tenha sido postado por outros usuários no Kwai), mas crie uma segunda criação editando o carretel de destaque, mudando o bgm [background music, ou música de fundo], adicionando legendas, etc”, aconselha uma das diretrizes a qual a reportagem teve acesso.

Em alguns dos casos, a reportagem identificou que agências criam tutoriais de como baixar filmes e séries em plataformas piratas de streaming para republicar seus trechos no Kwai.

Os vídeos também ensinam a como inserir “narrações” geradas via inteligência artificial em cima das cenas, de modo a produzir vídeos da categoria “NarraStars”, um dos nichos encomendados pela rede social chinesa.

Sócio da agência D&G diz que Kwai não desqualifica cortes “de terceiros” como outras redes, que isso facilita os lucros e que vídeos narrados por IA ganham impulsionamentos da própria plataforma que garantem mais visualizações

Plágio impulsionado

De acordo com a pessoa que trabalhou no Kwai entrevistada pelo Núcleo, a rede social fazia encomendas de conteúdos às agências, pagava a mais por eles e ainda dava “tráfego extra”, isto é, mais visualizações, para esses vídeos.

“Eu me recordo de um período em que quiseram se relacionar mais com aposta esportiva, então qualquer conteúdo sobre aposta, podia ser de baixíssima qualidade, era remunerado a mais”, disse.

A decisão por qual conteúdo priorizar dependia de análises feitas usando Google Trends, que mapeavam jogos, filmes e novelas em alta, por exemplo.

“O Kwai incentiva o plágio de conteúdo diretamente e é um requisito de boa parte dos vídeos”, explica. “Havia o acompanhamento de campeonatos, animes, novelas e tinha a diretriz de você cortar os melhores momentos e postá-los”, afirma.

Documento do Kwai dá exemplos “positivos” e “negativos” de conteúdos narrados: onde devem estar as legendas, qual o tamanho, duração dos vídeos, quais cenas escolher, etc.

O que dizem as agências

A agência Bluepink disse ao Núcleo que não poderia “compartilhar informações sobre o funcionamento interno da plataforma ou de suas agências parceiras”, mas afirmou que agências terceirizadas “são orientadas a garantir que os editores de conteúdo sigam as diretrizes [da comunidade do Kwai] e mantenham práticas éticas e apropriadas”.

Leia a íntegra do posicionamento da agência Bluepink

Não temos autorização para compartilhar informações sobre o funcionamento interno da plataforma ou de suas agências parceiras. Recomendamos que você entre em contato diretamente com as partes responsáveis para obter os esclarecimentos necessários.

No entanto, conforme o que nos é informado, a plataforma opera de acordo com a legislação vigente, sempre priorizando a segurança e o bem-estar de seus usuários.

Sobre pirataria, a plataforma adota medidas para inibir qualquer prática que viole direitos autorais, como limitar o tempo de visualização dos conteúdos, evitando o compartilhamento integral indevido.

Em relação ao controle de menores, a plataforma utiliza dados vinculados às contas para garantir a segurança dos usuários e proibir saques realizados por menores. Para prevenir violações das diretrizes, a plataforma mantém um monitoramento ativo das contas e pode interromper a monetização ou encerrar parcerias caso identifique condutas inadequadas.

As agências parceiras também são orientadas a garantir que os editores de conteúdo sigam as diretrizes e mantenham práticas éticas e apropriadas.

Esperamos ter ajudado dentro do que nos cabe responder. Ressaltamos que informações fora do contexto desta resposta não devem ser utilizadas.
Para mais detalhes, sugerimos buscar diretamente a plataforma.

A segunda agência mencionada neste texto, a JV, encaminhou um posicionamento semelhante. A empresa disse que o Kwai segue as leis e prioriza a segurança e conforto de seus usuários, além das agências também serem orientadas a pedir a seus editores que sigam as diretrizes das plataformas e sigam “boa conduta”.

Leia a íntegra do posicionamento da agência JV

Não temos permissão para falar sobre o funcionamento interno da plataforma e agências então você deveria tentar contato com eles. Porém, nos cabe responder que segundo a tudo que nos é passado a plataforma trabalha seguindo as leis e prioriorizando a segurança e conforto de seus usuários.
Para inibir e não apoiar pirataria, todos os conteúdos contem tempo específico sem compartilhar toda íntegra do conteúdo respeitando também direitos autorais.
Sobre controle de menores a plataforma segue mantendo a segurança identificando o usuário pelos dados vinculados a conta e para saque, não permitindo menores e para evitar que pessoas má intencionadas façam o contrário do orientado a plataforma tem o controle das contas podendo interromper a monetizaçao e parceria com o editor caso ele viole as diretrizes.
 As agências também são orientadas a orientar os editores para que elaborarem trabalhos seguindo as diretrizes e mantendo boa conduta. Espero ter ajudado no que cabe a nós responder.
Nenhuma fala fora de contexto será aceita em sua publicação falamos sobre nós e nossa ética, para mais informações somente a plataforma.
 Obrigado

Já a agência D&G Mundo Digital confirmou o recebimento de nossas mensagens e tentou marcar uma entrevista, mas deixar de responder às nossas mensagens.

Como fizemos isso

Identificamos ao menos cinco agências terceirizadas que recrutam editores de vídeo para o Kwai. Em seguida, confirmamos que algumas dessas empresas mantém contratos com a plataforma com uma fonte anônima e usamos três delas como referência para nossa apuração.

A partir daí, monitoramos grupos no WhatsApp, coletamos materiais dessas agências disponíveis de forma pública na internet e analisamos formulários de inscrição, além de contatá-las com pedidos de entrevista. Em um dos casos, recebemos automaticamente acesso a uma conta do Kwai Cut registrada na Zâmbia, ainda que tenhamos contato ela nos identificando como jornalistas.

Em seguida, confirmamos algumas das informações que coletamos com uma pessoa que já trabalhou no Kwai e tinha conhecimento da relação da plataforma com as agências terceirizadas. Também entrevistamos especialistas para entender melhor o contexto do funcionamento da rede social por uma ótica trabalhista.

Por fim, contatamos o Kwai e reforçamos nossos pedidos de entrevista às agências mencionadas nesta reportagem.

Reportagem Paulo Victor Ribeiro e Pedro Nakamura
Arte Rodolfo Almeida
Edição Alexandre Orrico