Agência de marketing digital HypeX organiza concursos no Discord e oferece recompensas incertas para cortadores de vídeos que tiverem maior volume de visualizações ou quantidade de posts sobre influencers como Pablo Marçal, Paulo Vieira e Renato Cariani. Maioria dos “competidores” sai sem nada
ℹ️ Esta reportagem faz parte da série “Cortadores Digitais”, uma investigação produzida pela equipe do Núcleo com apoio da Rede Internacional de Jornalistas do Trabalho (Redlabora), que concedeu uma bolsa de U$2 mil dólares para financiar a nossa apuração.
Coaches de empreendedorismo e fitness têm promovido “competições virais” para incentivar editores de vídeo amadores a inundarem redes como TikTok, YouTube e Instagram com cortes curtos de suas palestras, entrevistas e conteúdos. Em troca, prometem prêmios em dinheiro e acesso a mentorias para quem conquistar mais visualizações ou quantidades de publicações.
Desde dez.2023, influenciadores como Pablo Marçal, Renato Cariani, Paulo Vieira e Tio Huli promovem “competições de cortes” por meio da agência de marketing digital HypeX. A empresa organiza essas competições em canais do Discord, onde são disponibilizadas as regras dos campeonatos, os ganhadores do dia e tutoriais de edição, entre outros recursos como chats coletivos e sorteios.
Na prática, no entanto, esses campeonatos atraem milhares de “clipadores”, que inundam a internet com cortes motivacionais sem receber nada por isso.
Pelo menos quatro competições em andamento ou que encerram recentemente somaram 5,3 mil
participantes, enquanto os prêmios ofertados ao fim de cada uma delas variaram de R$ 50 a R$ 10.000 e podem ter recompensado até 262
pessoas.
* Pablo Marçal é coach de empreendedorismo e político e tem 12,7 milhões de seguidores no Instagram.
* Renato Cariani é coach fitness e tem 8,9 milhões de seguidores no Instagram.
* Paulo Vieira é coach de empreendedorismo e tem 5,2 milhões de seguidores no Instagram.
* Tio Huli é coach de finanças e tem 796 mil seguidores no Instagram.
É ✷ importante ✷ porque…
- Promessa de prêmios e mentorias gratuitas no Discord atraem o trabalho gratuito de centenas de editores de vídeo amadores
- Influenciadores pagam pela distribuição e multiplicação do próprio conteúdo nas redes de forma inautêntica
“É como se fosse uma gamificação do trabalho, já que não são todos os que fizeram cortes que são pagos”, explica o pesquisador Marcelo Alves, diretor de metodologia e inovação do Instituto Democracia em Xeque e professor da PUC-RJ.
“Cria-se toda uma aspiração, um discurso de prosperidade em que, se você for o melhor, aí sim será remunerado”
– Marcelo Alves, PUC-RJ
Em meio às eleições municipais de 2024, uma dessas competições foi usada para impulsionar a campanha de Pablo Marçal à prefeitura de São Paulo, prática considerada infração eleitoral. Na ocasião, as regras da competição orientavam a publicação em massa de vídeos com a hashtag #prefeitomarçal.
“Eu diria que 98% das pessoas nunca recebeu nada”, estima Alves.
🔎 Um relatório do Instituto Democracia em Xeque que analisou as competições de cortes promovidas por Pablo Marçal no Discord identificou que os concursos do coach mobilizaram 3,4 mil “cortadores” entre janeiro e setembro de 2024. Esses usuários distribuíram mais de 30,9 mil de vídeos curtos sobre Marçal nas redes no período.
Marcar o @, seguir e postar todos os dias
As competições costumam durar por volta de um mês e meio, e cada uma delas exige que os conteúdos usem as mesmas hashtags e marquem os perfis dos influenciadores e suas empresas.
É o caso, por exemplo, de um concurso em andamento até 30.dez de cortes do influencer fitness Renato Cariani. Além de promover suas páginas pessoais, os vídeos devem marcar a farmácia de manipulação Oficialfarma, da qual ele é garoto-propaganda.
Além disso, cada participante deve inscrever novas contas em cada campeonato, seguir os influencers contratantes nas redes sociais e postar vídeos todos os dias para que possam concorrer aos prêmios, além de outras orientações. No caso de outro dos concursos em andamento, do coach Paulo Vieira, por exemplo, há a determinação para que os cortes não incluam vídeos dele “careca”.

Criando expectativas
Um dos participantes dessas competições, Luiz Carlos, 33 anos, se inscreveu em um dos campeonatos promovidos por Marçal no início de outubro, atraído pelo “incentivo” do coach para que seus seguidores apostem no marketing digital. Nas primeiras semanas de concurso, no entanto, não ganhou nada.
“A rotina no começo é um pouco puxada porque precisamos fazer vários cortes por dia para engajar as páginas de forma mais rápida, além de montar toda a estrutura para postar os cortes prontos e editados”, explica. Na média, é preciso dedicar ao menos quatro horas
diárias aos concursos, disse ao Núcleo um dos “competidores” entrevistados.
“O que me atraiu [para a competição] foi o próprio Pablo Marçal, que nos incentiva a criar a nossa própria renda em suas lives e podcasts”, diz Luiz Carlos, um dos cortadores de vídeo

No entanto, fora os prêmios ofertados, a oportunidade de ganhos para canais recém-criados são mínimas, já que redes como TikTok e YouTube barram a receita publicitária de canais que não postam vídeos originais. Com isso, muitos “cortadores” recorrem à venda de produtos afiliados ou assinam aulas online sobre como viralizar vídeos, além de criarem eles mesmos seus próprios infoprodutos, como ebooks e cursos.
“As pessoas conseguem viralizar um vídeo ou outro e isso cria toda uma narrativa de truques, do que funciona ou não, que na verdade é um folclore em torno do algoritmo”, explica o pesquisador Marcelo Alves. “Aí surge uma ‘narrativa de controle’ desse algoritmo, de colocar link na bio ou horário e volume de postagem, mas tudo isso é baboseira”, diz.
Divisão dos “prêmios”
As competições de cortes realizam premiações diárias, além de um outro prêmio ao final de cada competição. Nos quatro concursos analisados pela reportagem, há por volta de cinco a oito prêmios diários divididos entre os canais que conquistarem a maior quantidade de visualizações ou o maior volume de postagens do dia, que variam entre R$ 50 e R$ 200.
Já os rankings finais costumam premiar entre 30 e 70 participantes, pelos mesmos critérios. Geralmente, o campeão ganha recompensas que vão de R$ 7 mil a R$ 10 mil mais acesso gratuito a mentorias e cursos. Do quinto lugar para baixo, contudo, a diferença cresce: os prêmios por mais de um mês de trabalho ficam entre R$ 1 mil e R$ 2 mil.
No caso da competição de Marçal, por exemplo, dos 71 “ganhadores”, 20 ganham acesso gratuito a palestras ou um “passe livre” vitalício para os conteúdos do coach. Paulo Vieira, Tio Huli e Renato Cariani também ofertam recompensas que vão de mentorias a um curso de emagrecimento.

RANKINGS. As premiações também revelam o volume de conteúdos produzidos em cada competição. Só no concurso destinado a promover cortes do coach financeiro Tio Huli, que reuniu pelo menos 242 participantes, o mais modesto dos revisados pela reportagem, uma participante publicou mais de 15 mil vídeos em um pouco mais de um mês.
No total, o top 10 do campeonato inundou as redes com cerca de 70 mil vídeos curtos.

MELHOR QUE CLT
Um dos participantes desses campeonatos entrevistados pelo Núcleo, o editor de vídeos Sidinei Sousa, 32 anos, relata manter dez contas distintas no TikTok, Kwai, YouTube e Instagram e trabalhar com cortes há dois anos. Ele explica que os vídeos que edita são postados em todas as redes ao mesmo tempo e que ele foca no nicho motivacional.
No concurso do Tio Huli, Sousa ficou em terceiro lugar no volume total de visualizações, conquistando 1,37 milhão de views. Com isso, ganhou R$ 3,5 mil e acesso gratuito a mentorias do coach de finanças.
Ex-supervisor em uma empresa de logística, ele diz gostar de editar vídeos porque pode trabalhar de qualquer lugar, apenas com celular e internet, além de para garantir tempo de qualidade com filhos, esposa e casa.
Na perspectiva de Sousa não vale a pena trabalhar oito horas diárias e demorar outras duas horas no trajeto de volta pra casa para receber R$ 2,5 mil mensais. “Hoje dá sim para ganhar mais [que CLT], mas não só com cortes, e sim com as diversas formas de se monetizar as plataformas”, garante.
“A competição é apenas uma forma de renda, temos como trabalhar com infoprodutos, formar novos clipadores por lives ou fazer parcerias com players para vender espaço para cortes deles nas plataformas em que você administra”, explica. Para ele, no entanto, o mais importante é o “tempo de qualidade” que o trabalho remoto oferece: dá para cuidar dos filhos, da esposa e do próprio bem-estar.
JORNADA FRUSTRADA. Já o analista de suporte Pedro Paulo, 38 anos, por exemplo, não teve a mesma experiência.
Ele mantém há quatro meses um canal de humor com 13 mil inscritos no TikTok, porém não conseguiu monetizá-lo porque a plataforma identifica o conteúdo, que é reeditado a partir do YouTube, como “não original”.
“Com isso, passei a oferecer produtos no mercado de afiliados, mas não é como pregam na web”, reclama.
“Acho que dá sim para ganhar muito com redes sociais e internet, porém é longe de ser ‘fácil’ como pregam por aí”, lamenta Pedro Paulo.
Ele explica que já tentou vender cursos do Kiwify e produtos do Mercado Livre e Amazon via programas de afiliados, só que os esforços não vingaram.
“Eu não dependo disso, mas penso nas pessoas que tentam porque acreditaram na promessa de quem faz vídeos no YouTube dizendo que é fácil, que dá pra tirar R$10 mil por mês, mas está bem longe disso e a minha realidade mesmo vai ao oposto desse caminho”, diz.
QUESTÃO DE ESFORÇO. Em mar.2024, uma das participantes dos concursos do Marçal perguntou à equipe da HypeX como “faturar milhões cortando vídeos” como o influencer prometia.
“Se vocês estão pensando somente no dinheiro fácil, esquece!”, disse um dos organizadores do concurso, Gabriel Galhardo, explicando que o trabalho não atrai resultados no curto prazo, requer “tempo, dedicação e conhecimento” e muitos desistem pelo caminho.
“Agora, se vocês estão focados no contexto geral e levando a monetização como consequência, aí sim vale a pena investir o tempo de vocês”, afirma.
Outro lado
O Núcleo contatou as assessorias de imprensa de Pablo Marçal e Paulo Vieira, além de buscar comentários de Renato Cariani e Tio Huli por meio de suas páginas nas redes sociais. Nenhum deles respondeu.
A reportagem também contatou a HypeX e o Discord, que confirmaram o recebimento de nosso contato inicial, mas não retornaram às nossas dúvidas, assim como as redes sociais TikTok e YouTube.
Como fizemos isso
Monitoramos quatro canais do Discord geridos pela HypeX que promovem competições de cortes virais: a “Cortes Paulo Vieira”, “Cortes do Tio Huli”, “Cortes do Cariani” e “Cortes do Marçal”. A partir disso, analisamos as regras, conteúdos e conversas trocadas na plataforma.
Em seguida, o cientista da computação Henrique Rieger raspou dados dos canais #resultado-diário e #divulgação presentes nesses canais, de modo que pudéssemos estimar qual a rede social que atraía a maior quantidade de visualizações para os vídeos e qual a predileta dos cortadores para publicação.
Conversamos também com o pesquisador Marcelo Alves, do Instituto Democracia em Xeque, para entender melhor os impactos dessas competições para o trabalho digital.